Cristina Índio do Brasil – repórter da Agência Brasil – Pioneiro do rock brasileiro e “maluco beleza”, Raul Seixas deixou, com seu trabalho múltiplo, mensagens de contestação e liberdade, transmitidas nas músicas e em seu modo de viver, que influenciaram admiradores e atravessaram gerações. O cantor e compositor, nascido em Salvador, completaria 80 anos neste sábado (28).
Sylvio Passos, amigo e fundador do fã clube oficial reconhecido pelo próprio Raul, explica a renovação de gerações de admiradores de Raul Seixas pela identificação da juventude com sua mensagem.
“Raul fala para várias gerações. Por que isso? Porque a linguagem do Raul trata de temas não tão comuns de maneira mais acessível. Ele falava diretamente para os jovens, e os jovens estão se renovando, de geração em geração. Por isso, os temas do Raul ainda mexem muito com essa geração mais jovem. Os velhos morrem e os jovens estão sempre se renovando, se renovando e se renovando. Os temas que o Raul aborda nas suas músicas são de muito interesse dos jovens”.
“Para a música brasileira, o Raul é um artista único que tratava de temas não tão simples, temas complexos como metafísica, filosofia, enfim, tratava de amor de maneira diferenciada e de questões políticas. A obra do Raul é muito ampla, pluralidade total”, completou.
Foi quando era jovem, em 1981, que o caso de admiração de Sylvio Passos por seu ídolo se transformou em amizade. Naquele ano, Passos se aproximou de Raul Seixas porque queria fundar um fã clube em sua homenagem. Ele não apenas conseguiu como garantiu uma feliz coincidência: a inauguração ocorreu na data do 36º aniversário de Raul.
Um anúncio em jornal, no qual Sylvio buscava referências de Raul, teve resultado quando o presidente do Beatles Cavern Club, Luis Antônio, entregou para Sylvio o telefone e endereço do artista, no bairro do Brooklin, na capital paulista, e aproximou os dois.
“Descobri que o Raul estava vindo morar em São Paulo, tinha saído do Rio, e consegui o telefone da casa dele. Liguei para ele, dizendo que estava fundando um fã clube para homenageá-lo, e ele me convidou para um almoço. Esse almoço virou um jantar, que virou se tornou frequente por aproximadamente dez anos. Nunca mais a gente deixou de se falar. Raul me levava para todos os lugares”, disse Sylvio Passos à Agência Brasil, acrescentando que a amizade, no primeiro momento, era uma relação de fã e ídolo mas, em pouquíssimo tempo, passou a ser uma relação de amigos comuns.
“Duas pessoas que se conheciam, apesar da diferença de idade. Raul era 18 anos mais velho que eu, mas tínhamos gostos em comum, muitas coisas em comum. Não sei como traduzir muito bem isso, mas era legal”, relatou. “Eu tive o privilégio de compartilhar da amizade e da confiança dele, que eu classificava inclusive como meu segundo pai. Tive meu pai biológico e o Raul era meu pai intelectual”.
Na escola, Sylvio Passos já tinha criado, com amigos, fãs clubes e fanzines das bandas inglesas Led Zeppelin, Jethro Tull e King Crimson. Mas, na época, surgiu a vontade de prestar homenagem a um “cidadão do rock brasileiro” ─ e a imagem que veio foi a de Raul Seixas, contou ele.
“O próprio Raul tornou o fã clube oficial. O nome do fã clube era Raul Rock Club, e o Raul botou Raul Seixas Oficial Fã Clube, o primeiro e único fã clube oficial do Raul”, disse orgulhoso.
Sociedade Alternativa
Um outro marco da trajetória de Raul foi o lançamento da Sociedade Alternativa, fruto da parceria com Paulo Coelho que vai além da música de mesmo nome e aprofundou os estudos esotéricos da dupla. Segundo Sylvio Passos, para Raul, era momento de provocar mudanças no mundo. Nos shows, ele distribuiu um gibi/manifesto chamado A Fundação de Krig-ha, que tinha ilustração da mulher de Paulo na época, Adalgisa Rios.
A Sociedade Alternativa chegou a ter uma sede alugada e papel timbrado. Com o tempo, houve a compra de um terreno em Minas Gerais, para a construção da Cidade das Estrelas, uma comunidade onde a lei única era “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”.
A iniciativa não foi bem recebida, e Raul foi preso e torturado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), sendo obrigado a deixar o país. Raul, Paulo, Edith e Adalgisa se mudaram para os Estados Unidos, onde fizeram contato com algumas personalidades, recordou Sylvio Passos, em texto publicado no site do Raul Seixas Oficial Fã Clube.
Memória
Vivian Seixas, uma das três filhas de Raul, disse que preservar a memória do pai tem sido um ato de amor e de responsabilidade. “Eu faço isso com muita entrega, porque sei o quanto ele foi e ainda é importante. Cada projeto, cada homenagem é pensado com cuidado, com respeito à obra e à essência dele. Não é só sobre manter vivo o nome ‘Raul Seixas’, mas tudo o que meu pai representava: liberdade, questionamento, autenticidade”, revelou Vivi à Agência Brasil. Ela considera lindo ver a renovação de gerações no envolvimento com o trabalho do Raul.
“Muita gente que nem era nascida quando meu pai morreu hoje canta as músicas, se emociona com as letras, se identifica com as mensagens. Isso mostra que a obra dele é atemporal. Meu pai falava com o coração, com a mente aberta, e com coragem, isso atravessa o tempo. Ele não era só um cantor, era um pensador”, observou.
A DJ e produtora musical vê na coragem de ser o que se é, sem máscaras, o maior legado do pai. “Ele nunca se curvou ao sistema, nunca teve medo de mudar, de provocar. Meu pai abriu caminhos, artísticos, filosóficos e até espirituais pra muita gente. E isso se mantém vivo, principalmente entre quem sente que não se encaixa nas caixinhas da sociedade”, apontou.
Vivi era bem pequena quando o pai faleceu, mas guarda algumas lembranças marcantes. “Eu lembro da barba dele, da voz… e a voz eu posso ouvir sempre que quiser, né? Isso é muito forte, porque me mantém próxima, me mantém conectada a ele. A voz dele está ali, viva, cantando. E ele era muito divertido, cheio de brincadeiras comigo. Tenho também as cartinhas que ele me escrevia, coisas simples, mas carregadas de afeto. É assim que eu guardo meu pai em mim”, afirmou.
Cowboy fora-da-lei
De acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), responsável no Brasil pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos seus autores, Raul deixou um legado de 324 obras musicais e 409 gravações cadastradas no banco de dados da gestão coletiva da música no Brasil.
“As obras musicais são as suas composições, com letra e/ou melodia e em parceria ou não. Já as gravações são registros de obras musicais disponibilizadas em forma digital (como no streaming) ou em suporte físico (como um DVD). Com isso, uma mesma obra musical pode ter diferentes gravações, como, por exemplo, a original, uma versão acústica ou um show gravado para um DVD”, explicou.
O ranking das mais executadas no último ano é liderado pela música Cowboy fora-da-lei, composta em parceria com Cláudio Roberto. O maior destaque entre as regravações é Medo da chuva, que compôs com Paulo Coelho, que aparece com 72 fonogramas cadastrados.
Mais uma vez, uma das comemorações na data de nascimento será no show Baú do Raul, no Circo Voador, centro do Rio de Janeiro. Criado em 1992 por Kika Seixas, uma das ex-mulheres do pioneiro do rock brasileiro.
A lista de artistas que participarão do show do Circo Voador representa bem essa mescla de idades de admiradores e seguidores. Estão previstos se apresentar Frejat, Paulinho Moska, Rick Ferreira, Arnaldo Brandão, Baia, Ana Cañas, Clariana, André Prando, BNegão, Emílio Dantas e Vivi Seixas.