O capítulo 11 de Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, traz a narrativa sobre a Torre de Babel, uma espécie de experimento geopolítico em que todos os homens da terra, por falarem o mesmo idioma, decidem construir uma cidade com um campanário grande o suficiente para chegar ao céu. A imponência do empreendimento serviria para glorificar o nome dos envolvidos, que não seriam dispersos sobre a terra. Talvez inocentes, os homens não estavam preparados para os ciúmes característicos de Deus, que lhes confundiu os idiomas, criou diversas e diferentes línguas, e os espalhou por toda a terra.
Como forma de lidar com os desafios políticos surgidos a partir da decisão divina, surge a figura do tradutor, verbo em latim (língua já morta) usado para indicar as ações de transpor, transladar, revelar, explicar, manifestar, explanar, representar, simbolizar e, claro: “passar de uma língua para outra”. Independente da crença sobre a divisão dos idiomas ou da compreensão do significado do verbo traduzir, é inquestionável a figura do tradutor, aquele responsável por construir pontes (não torres) entre idiomas e, por que não? Voltar a tornar o idioma um só.
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Esse é o papel exercido pela jornalista, pesquisadora e tradutora Danielle Naves de Oliveira. Egressa da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), fez mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela USP (Universidade de São Paulo) e, desde 2005, mora na Alemanha. Foi lá que iniciou e, não parou mais, as atividades como tradutora de filosofia e literatura.
Por entre as pesquisas de Danielle surgiu a personagem Selma Merbaum, poetisa que a brasileira traduziu e cujo livro “Coletânea Floral” chega às bancas nacionais em setembro, e já se encontra em pré-venda pela Editora Folhas de Relva.
A partir de agora, é a própria Danielle Naves quem explica os porquês dessa escolha e as reflexões que podem surgir a partir dela:
A poesia dessa menina, Selma Merbaum, em muitos aspectos, é semelhante a do repórter. O tradutor é alguém que se esconde atrás de palavras alheias, mas não só de palavras, de todo um universo psicológico, cultural e histórico. Traduzir é um jeito muito delicado, detalhista e discreto de ler. Talvez eu seja antes de tudo uma leitora ávida, que já fez exercícios lendo o mundo pela ótica de repórter, de pesquisadora acadêmica, e agora aprendendo a ler pela ótica da tradução.”
Por que traduzir o livro de Selma Merbaum?
“Como estrangeira e morando na Alemanha, me senti na tarefa de investigar o passado totalitário desse país. Meu jeito de fazer isso foi por meio da literatura, mais precisamente da poesia de mulheres vítimas do Holocausto. A Alemanha é um país que já tem 80 anos de trajetória com o trabalho e elaboração tanto psíquica como histórica com seu próprio passado.
“Sinto, em relação a isso, que há alguns paralelos importantes entre Brasil e Alemanha, sendo que o Brasil está apenas começando a lidar com as feridas de sua história totalitária, por exemplo, com a ditadura militar e o passado escravocrata. Mas ainda falta muito a ser feito.”
Como falar, hoje, de herança cultural judaica diante do massacre perpetrado pelo Estado de Israel aos palestinos?
“Essa questão é muito sensível, pois há de fato um mal-estar devido às atrocidades que assistimos todos os dias pela mídia internacional. É mais do que mal-estar, pois envolve evidências de genocídio e espero que a história um dia consiga nos explicar essa situação.
“Mas não podemos confundir o atual Estado de Israel com a história do povo judeu, um povo milenar que ancora sua cultura à letra e ao livro, e graças a isso consegue narrar seu próprio destino de modo exemplar. Narrar o próprio sofrimento é algo que se conquista. Outras vítimas de outros genocídios (como o africano, o dos povos nativos das Américas e mesmo o dos jovens negros das favelas brasileiras) têm feito ultimamente um esforço nesse sentido.
“Conseguir narrar a si próprio envolve um elevado nível de dignidade e auto-respeito. A poesia dessa menina, Selma Merbaum, morta aos 18 anos num campo de concentração, me deixou isso como lição.”