A ONG Minha Criança Trans ingressou com ação civil pública contra a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul e pede indenização por danos morais de R$ 1 milhão por moção de repúdio pela participação de crianças trans na Parada LGBT de São Paulo. Também pede indenização por danos morais individual no valor de R$ 30 mil por cada associado. O protesto foi proposto pelo bolsonarista Rafael Tavares (PL) quando era deputado estadual.
O repúdio proposto por Tavares foi aprovado pelo parlamento e enviado em junho de 2023 à presidente da entidade, Thamirys Nunes. O então deputado protestou contra a participação de um grupo de menores com o estandarte “crianças trans existem” na mais famosa parada do País.
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Na moção de repúdio, os deputados estaduais ressaltaram que representavam “os ideais e aspirações do povo sul-mato-grossense”. “Devemos promover a proteção da família e o bem-estar da criança, evitando procedimentos que possam prejudicar seu desenvolvimento físico, emocional e psicológico”, alegaram.
Ainda acusaram a ONG Minha Criança Trans, fundada por mães de crianças transgêneros, de influenciar os pequenos. “A questão central é que as crianças não possuem a maturidade necessária para decidir sobre sua orientação sexual, muito menos sobre uma possível mudança de gênero”, justificou a Assembleia.
“Definem como questão central o fato de que crianças não possuem maturidade necessária para decidir sobre sua orientação sexual (note-se o erro, tendo em vista que não se trata de orientação sexual, e sim identificação de gênero). Além disso, afirmam que o processo de transição envolve implicações irreversíveis, o que faz com que não devam opinar sobre isso. Alegam que, dessa forma, as crianças estarão seguras apenas em um ambiente ‘onde não haja preocupação com a influência desse tipo de ativismo’, devendo ser promovida a proteção da família e o bem-estar da criança”, pontuaram os advogados Carlos Nicodemos, Maria Fernanda Fernandes Cunha e Lara Oliveira Salles.
A entidade interpelou o legislativo judicialmente para explicar os fundamentos que levaram à moção de repúdio. No entanto, não houve resposta e a ONG Minha Criança Trans decidiu entrar com a ação civil pública.
Contra a discriminação
“A luta pela despatologização das identidades trans tem sido reivindicada pelos movimentos de luta política de pessoas transgêneras e sido reconhecida pelos estudos sociais de gênero e sexualidade e pela OMS. Essa reivindicação parte da premissa que a transgeneridade, especialmente a transexualidade, não se configura como doença, mas como outra possibilidade de expressão e vivência de gênero não cisgênera. Não obstante essa luta, de forma genérica, seja árdua e constante, quando vinculada a crianças e adolescentes, mostra-se ainda mais complexa e delicada”, esclareceram.
“A ONG Minha Criança Trans é a primeira organização não governamental do Brasil dedicada exclusivamente às questões relacionadas à saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos das crianças e adolescentes transgêneros”, destacaram. A entidade dá apoio para 725 famílias.
“Embora seja um direito fundamental de importância central, a liberdade de expressão não é absoluta. Como todo direito, ela encontra limites quando entra em conflito com outros valores constitucionais igualmente protegidos, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), a igualdade (art. 5º, caput, CF) e a proteção integral de crianças e adolescentes (art. 227, CF)”, justificaram, sobre a ação contra a moção de repúdio proposta por Tavares.
“Isso significa que, embora seja legítimo manifestar opiniões e críticas, não se pode invocar a liberdade de expressão para justificar práticas que violem direitos fundamentais de terceiros”, alertaram.
“A imunidade parlamentar não deve ser utilizada como um escudo contra a responsabilidade, especialmente por políticos que, valendo-se de seu poder, proferem discursos odiosos que ferem o direito à dignidade humana de determinadas comunidades”, frisaram, citando artigo da Constituição e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Direito das crianças
“A participação de crianças em eventos públicos, como as Paradas do Orgulho LGBT, encontra respaldo jurídico no ordenamento brasileiro. A Constituição Federal, em seu artigo 227, estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito, à convivência comunitária, à liberdade e à cultura”, ponderaram.
“Diante disto, não há quaisquer fundamentos jurídicos que justifiquem o disposto na moção de repúdio para além de um discurso discriminatório e ofensivo. Como o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou, a participação de crianças e adolescentes em paradas LGBT é legitima e respaldada em normativas de proteção das crianças e da dignidade humana”, afirmaram os advogados.
“Assim, a moção de repúdio como um meio de criminalizar a ONG que promoveu o bloco das crianças na Parada e de deslegitimar a participação das crianças e adolescentes nas mesmas não encontra qualquer amparo nas funções parlamentares em um Estado Democrático de Direito, razão pela qual não deve ser coberta pela imunidade parlamentar”, pontuaram.
“O impacto da moção de repúdio feita por uma Assembleia Legislativa contra crianças e adolescentes trans é grande, negando assim a existência de uma comunidade inteira e ainda desprezando aqueles que ainda lutam por seus direitos mais básicos. Como representantes do povo brasileiro, este repúdio não só fere os direitos fundamentais da comunidade LGBT+, mas também legitima e naturaliza esse tipo de violência perante a sociedade brasileira”, explicaram, sobre o motivo da ação.
“Portanto, é fundamental que a sociedade, especialmente o Poder Legislativo, que tem o poder de representar o povo, reconheçam a responsabilidade de evitar a banalização de existência da comunidade trans”, concluíram.
A ONG Minha Criança Trans pede a retração pública em veículo de comunicação de alcance nacional e nas mídias sociais do réu; indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 1 milhão.
Também pede indenização por danos morais individual no valor de R$ 30 mil por cada associado. Como a entidade dá apoio para 725 famílias, a conta da discriminação pode cusatr R$ 21,7 milhões para a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul.
Na semana passada, o juiz Eduardo Lacerda Trevisan, da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, encaminhou o processo para uma das Vara da Infância e Juventude.
Rafael Tavares teve o mandato de deputado estadual cassado pela Justiça Eleitoral. No ano passado, ele foi eleito vereador por Campo Grande.