Desafiando todas as pesquisas de intenções de voto, o Partido Socialista ganhou a maioria absoluta nas eleições gerais, ocorridas no domingo (31) em Portugal, alcançando 69% dos votos dos 303 distritos do país. Com o resultado, o líder do PS, António Costa, será reconduzido ao posto de primeiro-ministro por mais quatro anos. Esse foi um processo conturbado, que marca uma virada inédita na composição do parlamento português desde a revolução de 25 de abril de 1974, quando foi encerrada a ditadura de António de Oliveira Salazar.
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Não foi a primeira vez que o Partido Socialista alcançou a maioria absoluta, o feito foi registrado também em 2005. A diferença, agora, está na consolidação da extrema direita ao parlamento e o escanteamento de tradicionais partidos de esquerda e de centro-direita. Essa legislatura também marca o fim da “geringonça portuguesa”, um arranjo entre o PS e a CDU (Consolidação Democrática Unitária), para marcar maioria no parlamento. O acrônimo CDU é usado como referência à unidade entre o Partido Comunista Português e os Verdes, reduzidos, agora, a legendas nanicas.
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Além da CDU, o PS também contava com o apoio do Bloco de Esquerda na geringonça, mas a harmonia foi abalada no ano passado, quando António Costa impôs barreiras para a inclusão das pautas dos aliados no orçamento para 2022. Entre os pontos defendidos estava o aumento do salário mínimo, um dos menores da Europa, mas o então primeiro-ministro afirmava que Portugal precisava garantir estabilidade para a recuperação econômica em meio aos efeitos da pandemia da covid-19. Assim, o Bloco de Esquerda e o PCP se aliaram à direita, desmoronando a geringonça e inviabilizando o orçamento de Costa, que os acusou de irresponsáveis.
Diante da falta de consenso, e com a proposta de orçamento paralisada, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa convocou eleições antecipadas. Embora tenha sido registrada abstenção de 42%, o comparecimento às urnas foi acima do esperado, considerando as medidas restritivas de circulação impostas para conter a transmissão do coronavírus. Também em Portugal, as infecções estão em alta, mas o sucesso da adesão à vacinação mantém as hospitalizações em baixa.
E foi a gestão da pandemia o carro chefe da vitória do Partido Socialista. António Costa foi reconhecido por conduzir a pós-crise, impôs medidas impopulares, cujo resultado foi traduzido em números exequíveis de internação e, ainda, conduziu um dos mais bem sucedidos programas de vacinação contra a covid-19 na Europa. Ainda assim, as pesquisas apontavam empate técnico com o PSD, mas nas urnas, o leão da direita moderada fez 79 deputados, número insuficiente para fazer frente ao novo governo.
Durante as comemorações do resultado, Costa já começou a dar o tom da próxima legislatura e admitiu na coletiva de imprensa reproduzida pela agência Lusa que “a maioria absoluta não significa poder absoluto”. Não significa governar sozinho. É uma responsabilidade acrescida e significa governar com e para todos os portugueses”. Isso quer dizer que vai buscar acordos.
Os muitos votos conferidos ao Partido Socialista agradaram ao mercado econômico, sempre à espreita, de olho no déficit orçamentário. As primeiras notícias dos jornais portugueses com análises econômicas do resultado das eleições apontam que os “investidores apreciarão o novo mandato forte de Costa” (O Público); “com políticas econômicas globalmente sensatas, Portugal tem condições para continuar num caminho sólido de recuperação” (O Observador); e que “Portugal irá avançar com a consolidação orçamental e com a implementação do plano de recuperação e resiliência depois das eleições antecipadas” (Lusa).
António Costa chegou ao poder em 2015, logo após a crise da dívida pública registrada entre 2011 e 2014. Teve como mérito a condução de um crescimento econômico constante, mas ainda assim governa aquele que é considerado o país mais pobre da Europa ocidental. Os níveis de pobreza de Portugal o fazem dependente de fundos europeus de recuperação, outro ponto vigiado pelo mercado. Agora, com o governo considerado estável, o país terá acesso a um pacote de 16,6 bilhões de euros, montante equivalente a US$ 18,7 bilhões, destinados aos projetos de crescimento econômico.
Da comédia à tragédia; a nova direita portuguesa
A vitória do socialista António Costa foi comemorada ao som do hino “Grândola Vila Morena”, canção interpretada por Zeca Afonso e que embalou a Revolução dos Cravos, em 25 de abril 1974, data em que Portugal virava a página do regime fascista. Não é possível dizer que abandonou a história, que deixou para trás os 41 anos do governo autocrata e autoritário, porque o fascismo nunca desistiu de flertar com o poder português.
A prova está no desempenho do Chega, partido de extrema direita que saltou de um para 12 representantes no parlamento. Em nada é óbvio o nome da legenda, onde os simpatizantes se enxergam nas falas antiaborto, repressor, racista e xenófobo. A estratégia de impacto no discurso e, assim, arrebanhar adeptos não é novidade, ainda que implique na retirada de declarações absurdas, porque ao fim, a legenda demonstra a essência.
Foi o que houve em 2020, quando na convenção do partido votou uma moção defesa da retirada dos ovários das mulheres que se utilizassem do serviço público de saúde para fazer aborto. Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez é permitida até a décima segunda semana. Para os adeptos do Chega, só estariam livres do procedimento de retirada dos ovários as mulheres vítimas de violação ou cujos fetos apresentem má-formação.
Embora não tenha sido aprovada, a moção recebeu elevada gama de votos favoráveis e o debate ganhou jornais, as mídias sociais e os cafés. Na mesma linha, de debate viral, o líder do Chega foi condenado pela justiça portuguesa por racismo após proferir ofensas à comunidade cigana. Os atritos com a população cigana multiplicaram os aliados, em especial nas forças de segurança, para quem o Chega guarda estreito relacionamento.
A cada esbravejada racista no Twitter, mais e mais portugueses se enxergaram no Chega. Foi o que aconteceu em 2020, quando a legenda convocou uma passeata para marcar o assassinato a sangue frio do ator negro Bruno Candé, no distrito de Loures, em Lisboa. Em maio daquele ano, o artista foi atingido por cinco tiros disparados por um ex-combatente da guerra colonial travada na África até 1974. Três dias antes do crime, o militar afirmava em pública que odiava negros. Segundo a imprensa portuguesa, o autor foi condenado a 22 anos de prisão em regime fechado pelo crime de assassinato motivado por racismo. Ainda assim, os adeptos “cheganos” foram às ruas para impor que os portugueses não são racistas.
Pelas terras lusas, contudo, não é de todo considerado embaraçoso encontrar as portas ao mercado de trabalho fechadas para negros, estrangeiros, mulheres, LBGTQI e ciganos. Ao contrário, para esses grupos é direcionado o ódio pelos baixos salários, pelas parcas e insalubres oportunidades de emprego e pelos os impostos. Por isso, o Chega é contra o multiculturalismo e prega a atração de imigrantes cujos valores sejam “semelhantes aos da sociedade portuguesa”, como assinala na declaração de princípios e fins da legenda.
É no fator, imposto, contudo, que o Chega literalmente “chega” aos ouvidos dos portugueses assombrados pelas taxas administradas pelo Estado. O discurso populista, que aponta inimigos fictícios e aprofunda a segregação de grupos minoritários ou sub-representados, serve de cortina para as reais intenções “cheganas”, o estado mínimo. Nada diferente da autointitulada Iniciativa Liberal, um grupo que, na comparação brasileira, é semelhante ao Novo, inclusive na maneira de vestir dos representantes.
A Iniciativa Liberal conseguiu fazer oito deputados com propostas que beiram a comédia e que, no futuro, podem ser transformadas em tragédia. Entre elas está “a defesa do ensino de português como Língua Materna para portugueses e lusodescendentes residentes fora de Portugal”. Entre um e outro arroto xenófobo, a Iniciativa Liberal e o Chega atacam, mas não agem contra a corrupção. Conquistam, assim, o português mediano, que alimenta a cadela do fascismo ainda no cio e prestes a parir crises e, até, guerras